Em Quarenta dias, da escritora Maria Valéria Rezende, Alice, paraibana e professora aposentada, está deixando a Paraíba para ir morar em Porto Alegre por causa da filha Norinha que deseja se tornar mãe mas não quer abandonar sua carreira profissional.
Já nesse primeiro contato com a vida de Alice, eu senti uma empatia pela personagem. Por que ela precisa abandonar sua vida, casa e amigos para se tornar apenas avó? A mulher idosa, que já criou os filhos e já “fez de tudo na vida”, agora deve viver a vida dos outros? Para mim isso deve ser uma escolha da mulher e não da família.
Acontece que Alice acaba cedendo. A família e alguns amigos próximos achavam que seria bobagem ela desperdiçar a oportunidade de viver no Sul. No meio da mudança, ela resgata um caderno velho que tem na capa uma Barbie. E esse passa a ser sua companhia. Alice o transforma em um diário e é através do que ela escreve nas páginas velhas da Barbie que acompanhamos a sua nova vida em Porto Alegre.
…Vou me acalmando desse jeito. Foi bom botar pra fora essa coisa toda, dizer claramente pra mim mesma o que tinha vergonha de dizer a qualquer pessoa, vergonha de dizer o que minha filha fez comigo?, ou da minha raiva, do meu próprio egoísmo?, é egoísmo querer ter minha própria vida? Diga-me, Barbie, você que nasceu pra ser vestida e despida, manipulada, sentada, levantada, embalada, deitada e abandonada à vontade pelos outros, você é feliz assim?, você não tem vergonha?, eu tenho vergonha de ter cedido, estou lhe dizendo, vergonha (pag 42)
Logo nos primeiros dias, Alice recebe a notícia de que a filha e o marido Umberto vão morar por quase oito meses na Europa por motivos acadêmicos. A filha já sabia da viagem e escondeu só para não adiar a mudança da mãe. Depois disso, Alice que já estava infeliz e perdida, resolve se trancar no apartamento, preto e branco, e muito sofisticado que Norinha arrumou para ela, e fazer nada, apenas ler alguns livros. A ideia era não se importar com datas, horas, telefone, celular, e para bloquear qualquer contato com pessoas, ela inventa uma viagem para Jaguarão, assim não podia ser incomodada por ninguém.
Após sete dias nesse retiro, Alice recebe uma ligação de Elizete, vizinha de João Pessoa, pedindo ajuda para encontrar o filho de uma amiga, o Cícero, que foi morar em Porto Alegre e já tinha um ano que não mandava notícias. A ideia de encontrar o filho perdido de uma amiga motivou Alice a sair do retiro e começar sua peregrinação pelas ruas desconhecidas daquela cidade grande e vazia de sentido para ela.
Já não sou capaz de reproduzir assim, detalhadamente, em sequência quase exata, os caminhos que percorri depois que me soltei de uma vez, à deriva de corpo e alma. Esses já não eram propriamente caminhos, eram sucessivos buracos, frestas, rachaduras na superfície da cidade pelas quais eu ia passando de mundo em mundo, ou era vagar por mundo nenhum… (pag 102)
Nessa busca por alguém que ela não conhecia e não tinha muitas informações, Alice andou pelas ruas de Porto Alegre, dormiu em praças, rodoviárias, hospitais, conheceu pessoas, algumas nordestinas como ela, ouviu histórias de vida, fez amigos. Como a Alice, do País das Maravilhas, viveu inusitados encontros e grandes descobertas pelas tocas e pequenas brechas da cidade.
Foi impossível largar a leitura porque Alice tem carisma, é sincera, e não esconde nada de Barbie e de nós, os leitores. Acompanhei seu itinerário com uma curiosidade imensa de saber aonde ela ia parar e o que ia encontrar pela frente. E através dos seus passos, pensei bastante sobre o papel do idoso na sociedade, invisibilidade social e migrantes nordestinos.
Conversando com minha mãe sobre o livro, ela me lembrou dos quarenta dias que Jesus ficou no deserto. A peregrinação é sofrida mas é uma preparação, um caminho, para um encontro pessoal e com Deus. Os quarenta dias da Alice no “País” de Porto Alegre foram necessários para criar uma nova aliança com ela mesma.
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+ sobre o livro e autora:
- As fotos são da edição da Alfaguara. Deseja adquirir o livro? Comprando por esse link você estará colaborando com o blog 😉
- O livro venceu o prêmio Jabuti 2015 de melhor romance
- Indico a leitura da matéria do Jornal Estadão – Maria Valéria viveu na rua para escrever romance – e da entrevista no Correio Braziliense – Ganhadora do Jabuti fala sobre “coisas invisíveis” na sua obra.
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