Eu sou uma pessoa de poucas palavras ditas, gosto das escritas. Isso me faz ser uma boa ouvinte e eu gosto de ouvir/ler o que as pessoas têm a dizer, principalmente sobre os acontecimentos das suas vidas. Em especial aqueles que me deixam mais ainda sem palavras. Aquele papo que ao final eu vou soltar algo do tipo: nossa, nem sei o que dizer! Eu li o novo livro da jornalista Eliane Brum, “Meus desacontecimentos – a história da minha vida com palavras” (Editora Leya, 144 páginas), e foi exatamente esse o meu pensamento ao terminá-lo.
Às vezes me perguntam o que aconteceria comigo se não existisse a palavra escrita. Eu respondo: teria me assassinado, consciente ou não de que estava me matando. É uma resposta dramática, e eu sou dramática. O que tento dizer é que, se não pudesse rasgar o papel com a caneta, ainda que numa tela digital, eu possivelmente rasgaria o meu corpo. E, em algum momento, o rasgaria demais. – pag 17
Não há dúvidas que a relação da Eliane com as palavras é uma relação íntima, de entrega necessária, um caso até de sobrevivência e poder conhecer essa história foi um prazer. Eliane nos deixou entrar na sua “vida com as palavras” também de forma íntima, não nos poupou dos detalhes, das feridas, dos dramas e nos inundou de poesia. Transformar o cotidiano, o banal, a sua vida, diante dos olhos dos outros, em poesia não é para muitos. É um dom.
A jornalista que já narrou várias vidas, agora narra a sua própria. Nos apresenta sua avó com “as histórias urdidas com retalhos pinçados do território sem fronteiras do ontem” e que sabia “que, para algumas vidas, é mais fácil mudar o passado que o futuro”; o seu primeiro ato revolucionário de queimar a parede da prefeitura com um fósforo; sua irmã para sempre viva e seus irmãos; o início da sua paixão pela leitura e pelos livros e muitos outros desacontecimentos.
Aprendi nesse território por desbravar que o princípio não é o verbo, mas o cheiro. Meu primeiro ato era inspirar aquelas folhas virgens, as quais eu seria a primeira a decifrar. Depois eu passava a ponta dos dedos na capa, sentindo a pele e a forma, acariciava as páginas com reverência. Só então lia a primeira palavra, toda arrepiada. Até hoje repito esse ato nas livrarias, causando algum estranhamento. Para mim, os livros sempre foram sagrados, mas apenas para que pudessem ser profanados. Mais tarde eu faria sexo da mesma maneira, ligando os corpos e as letras para sempre na minha apreensão do mundo. – pag 102
Um dos meus hábitos de leitura é marcar com post-it as partes que mais me chamaram atenção em um livro e algumas frases destaco com marcador de texto, mas depois que termino de ler retiro os post-it sem pena. Só que resolvi não retirar os post-it desta vez. Poucas páginas, grandes significados.
Aprendi ali que ninguém é substituível. Alguns se tornam substituíveis ao se deixar reduzir a apertador de parafusos da máquina do mundo. Alienam-se do seu mistério, esquecem-se de que cada um é arranjo único e irrepetível na vastidão do universo. Quando a alma estala fingem não saber de onde vem a dor. Então engolem a última droga da indústria farmacêutica para silenciar suas porções ainda vivas. Teriam mais chance se ousassem se apropriar de sua singularidade. E se tornassem o que são. Para se perder logo adiante e se buscar mais uma uma vez, já que ser é também a experiência de não ser. – pag 104
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