Já comentei aqui sobre o poder que a literatura tem de nos possibilitar viver outras vidas, mas esse é apenas um dos poderes que essa arte possui. Um outro e que julgo também muito importante é a liberdade. Fazer e consumir literatura são atos livres.
A partir do momento que um texto é dado como “acabado” pelo seu autor, ele começa a existir para o leitor e a partir dali, torna-se algo também do leitor. A leitura que ele fará da obra estará intrinsecamente ligada a sua subjetividade e por ser algo único abre-se, assim, um leque de possíveis releituras e isso, na minha opinião, enriquece a discussão, a literatura e a vida.
Há quem se arrisque e além de fazer uma releitura, faz de um clássico. É quase como tocar em algo sagrado, mas, como já comentei, considero algo inevitável e essencial. Um livro que venha a ser uma releitura é um novo olhar, uma nova obra e uma ode ao seu original.
Gerald Brom, ilustrador americano de revistas de RPG, graphic novels de terror e quadrinhos, escreveu O ladrão de crianças (Benvirá, 2014), uma releitura fantástica obscura do clássico Peter Pan de James Barrie. O próprio Brom comenta o que o levou a escrever o livro:
“… Os meninos nesta ilha variam, claro, em número, conforme são mortos, e por aí vai; e quando eles vão crescendo, o que vai contra as regras, Peter se livra deles; mas naquela época havia seis, contando os gêmeos como dois”.
Peter se livra deles? Hein? O que isso significa? Peter os mata, como se cuidasse de um rebanho? Ele os manda para algum lugar? Se é assim, para onde? Ou Peter apenas os faz passar por tantos perigos que a cota está sempre em constante substituição? – pag. 428
Brom fez a partir disso vários questionamentos sobre a personalidade do Peter Pan e, principalmente, começou a desconstruir a imagem fofa e infantil e a construir o seu Peter com doses de loucura e fantasia sombria, ou, como ele mesmo definiu, um sociopata carismático.
O Ladrão de crianças se passa nos tempos atuais e tem dois cenários principais, Nova York – onde Peter resgata/sequestra crianças que estão passando por perigo ou foram abandonadas pela família – e Avalon, uma das ilhas do Outro Mundo e que está morrendo.
Ao pôr do sol de um dia do início de outono, por entre as folhas caindo, o ladrão de crianças espreitava das sombras as crianças brincarem. Elas escalavam a tartaruga verde gigante, desciam pelo escorregador amarelo, riam gritavam, provocavam-se e corriam atrás umas das outras sem parar. Mas o ladrão de crianças não estava interessado nesses rostos felizes, não estava tentando roubar uma criança qualquer. Tinha um interesse particular. Buscava um rosto triste, solitário… ou uma criança perdida. E quanto mais velha fosse, melhor; de preferência uma criança de treze ou catorze anos, porque crianças mais velhas são mais fortes, mais resistentes e tendem a viver mais tempo. – pag. 13
Em uma dessas procuras, Peter encontra Nick que estava passando por um momento difícil. Se envolveu com alguns traficantes no Brooklyn e quase foi morto, mas Peter apareceu para ajudá-lo. Nick era o alvo perfeito para ele, mas para levar uma criança até Avalon é necessário que ela vá de livre e espontânea vontade pois só assim eles vão conseguir passar juntos pela névoa que esconde e protege Avalon de Nova York. O convite de Peter parecia irresistível, ir para um lugar mágico e sem adultos, mas Nick era desconfiado por natureza e não aceitou de primeira, porém acabou indo sem deixar para trás os questionamentos e desconfianças.
Nick fez uma careta. Crescer pode ser mesmo uma merda, pensou. E, sem dúvidas, coisas ruins acontecem a pessoas boas, e na maior parte das vezes o mundo não dá a mínima. – pag. 34
Tudo tem seu preço. Tudo. Algumas coisas apenas custam mais que outras.” – pag. 57
O livro é divido em cinco partes: Parte I – Peter; Parte II – A árvore do Diabo; Parte III – Os comedores de carne; Parte IV – O capitão; Parte V – Ulfger. A leitura não é cansativa, apesar das partes descritivas do ambiente e das cenas de luta, acredito que foi na medida certa para fazer com que o leitor passasse também pelas sombras que rodeavam Avalon e toda narrativa. E é possível conhecer os personagens, cenários e criaturas através das ilustrações feitas pelo próprio Brom. Os desenhos são todos com aspecto gótico e dark, sempre nas cores preto, branco e cinza. E, no início do livro, há um mapa para que o leitor situe cada lugar por onde passa a aventura de Peter e os seus Diabos.
Assim como na versão original, Peter quer brincar e fazer novos amigos. A grande diferença é que a brincadeira ficou menos lúdica e mais perigosa. Este livro não é infantil. Brom conseguiu transformar uma aventura típica da sessão da tarde em uma história cheia de sombras, bruxas, elfos, fadas, ogros, lutas sangrentas, ódio, vingança e muita obsessão e loucura. E isso foi de um fascínio sem igual.
Sempre a contradição, pensou Tanngnost. Num momento o assassino de sangue-frio, no próximo um menino sentimental; sempre o eterno otimista, apesar de uma vida de tragédias. Claro, é seu charme. É o que atrai as crianças para ele, faz que o amem, mesmo com tantas contradições. – pag. 224
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