– Conte-me sobre isso, Justin. – Péssima técnica! Percebeu instantaneamente. Colocou de volta os óculos e anotou no seu bloco: “Erro – pedir informações – contratransferência?”¹
Cada vez mais ouvimos falar das doenças ou distúrbios psicoemocionais. Algumas delas, é bem verdade, são dignas de uma investigação, acompanhamento e tratamento por profissionais especialistas na área. Outras se constituem no que costumo chamar de mazelas da alma.
Stress e depressão tornam-se adjetivos corriqueiros nos status quo do individuo contemporâneo. Ao passo em que há uma desvalorização dos sentidos das palavras, há uma mercantilização das pseudo curas. Poderíamos dizer que vivemos a era da banalização do sentir.
Vivemos numa busca incessante por liberdade. Mais do que nunca ansiamos ser livres e independentes – em todos os aspectos. Desejamos com tanto afinco essa tal freedom que nos desprendemos por demais da nossa própria alma. Deixamos de sentir as emoções que os vínculos nos propiciam. Passamos tão somente a viver na camada da superfície do “sentimiento”. Aqui abro um breve parêntese: (A raiz da palavra sentimento fica bem mais evidente quando a analisamos no español. Senti-miento – mentir sobre o que se sente).
Eis a chave das mazelas da alma. Mentimos o tempo todo e todo tempo para nós mesmo sobre aquilo que sentimos. Projetamos no outro tanto as nossas angústias, medos e decepções quanto a nossa alegria e felicidade. Mentimos para nós mesmo quando dizemos querer ser livre e atribuímos o nosso êxito ou fracasso a outro alguém. Mentimos para nós mesmos quanto superlotamos os nossos números de amigos nas redes sociais só para não nos sentirmos sozinhos. Ou quando em uma roda de amigos detemos toda nossa atenção às redes sociais só para não assumirmos que precisamos criar vínculos físicos e afetivos (que precisamos daquela pessoa que está ao nosso lado)…
Simplesmente mentimos. Na busca dessa tal liberdade criamos um campo de força ao nosso redor e fabricamos um mundo paralelo. Mas não uma “terra do nunca”. Ao revés. Fabricamos um mundo em tons de cinza. Teatro mudo, sem expressão corporal. Meros robôs. Um mundo que neutraliza os encantos do real. Ofusca a beleza das gargalhadas entre amigos. Vulgariza a delicadeza do toque daqueles que estão enamorados… Passamos a acreditar mais na existência do lado de lá.
Marionetes nas mãos do capital, nós abrimos mãos do nosso prazer de sentir. E para não sermos julgados por isso saímos dizendo levianamente “te amo” a todos. Por que amamos ou por que precisamos nos sentir amados? E, assim, mais uma vez, mentimos. Mentimos a nós mesmo, ao outro e para os outros. Um jogo de poder no mundo que camufladamente vangloria o individualismo e o egoísmo. Uma enorme fábrica moderna de mazelas da alma.
Toda essa reflexão torna ainda mais viva em minha mente um trecho de uma canção de Maria Gadú que diz “quando mentir for preciso, poder falar a verdade”². E, assim, comparto com vocês uma das minhas recorrentes perguntas sem respostas: – Para que mentir?
>> [Diário de leitura 1] “Mentiras no Divã” e as reflexões do meu “eu”
¹YALOM, Irvin D. Mentiras no divã. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 47 / ²Shimbalaiê. Maria Gadú. Som Livre, 2009.