Eu tinha entre doze e treze anos de idade quando fiz a minha primeira eucaristia. Lembro como se fosse ontem o dia em que eu e meus amigos de catequese fomos confessar nossos pecados ao padre pela primeira vez. Faz parte do ritual cristão antes de receber o corpo e sangue de Jesus.
Eu lembro de ficar pensando sobre o que eu ia falar. Eu ficava tentando refletir sobre as atitudes de uma menina de doze anos que poderiam ser consideradas pecado. Não sabia direito o que era pecar. Meu Deus, o que eu tinha vivido com essa idade para ter pecado?
Acabei associando o pecado à desobediência. Me senti culpada por ter desobedecido minha mãe em algum momento e então ia confessar isso, pedir perdão para Deus e pagar por meu pecado. O pagamento foi rezar um Pai-Nosso e dez Ave Marias. Depois disso, eu nunca mais me confessei.
Esse episódio da temporada cristã da minha vida reapareceu enquanto lia o “Sete confissões capitais e outros pecados”, de Adriana Sydor. O livro é um confessionário aberto. É onde a autora vai falar sobre seus pecados consciente de que os comete, como toda boa humana. Mais importante ainda sem o peso da culpa. Até um pouco feliz por se permitir vivê-los, alguns mais intensamente do que outros. Um verdadeiro “conhece-te a ti mesmo”.
Em tempos de redes sociais digitais, em que nossa vida passa por filtros, os de imagem e os de conteúdo, pensar sobre nossos pecados, nossos vícios, talvez esteja, como disse a própria Adriana, um pouco fora de moda.
Me descobri extremamente pecadora (ok, me reafirmei como pecadora), fui cúmplice da autora em vários pecados. Ao ler sobre sua relação com a inveja, me lembrei de quantas vezes ouvi e falei: tenho inveja branca de você. Além de ser um comentário extremamente racista, é totalmente sem noção dizer isso.
Se invejamos a vida de alguém é porque há algo de errado em nossa vida, ou como Sydor confessa: a inveja explica o próprio fracasso. Esse é um dos capítulos mais interessantes do livro. A autora faz uma reflexão sobre o pecado e como conviver pacificamente com ele: “Saber o que eu invejava, prêmio de consolação, foi, pelo menos, um reconhecimento do que precisava melhorar”.
Hoje se talvez fosse fazer uma confissão, o padre ia ter que reservar uma manhã inteira do domingo para mim. Mas eu não sinto vontade de me confessar na igreja com o padre. O Deus em que acredito hoje não castiga. Acredito que eu não vou precisar rezar um Pai Nosso e dez Ave Marias para pagar pelos meus pecados. Eu só preciso assumir, principalmente para mim mesma, como Adriana fez, de que “sou, como todo mundo é, uma mistura delicada entre vícios e virtudes”.
conheça a autora e acompanhe seu trabalho através do Instagram e Blog
o livro foi publicado pela Travessa dos Editores e o recebi através do agente literário Stéphane Chao. obrigada! 😉
No vídeo tem Diário de Leitura com indicação do livro de ficção científica, Kindred – Laços de Sangue, escrito por Octavia Butler. E CINELOG com o filme Ocean’s 8 (Oito mulheres e um segredo) que está em cartaz nos cinemas.
A dica de leitura e o papo de hoje é sobre o livro da jornalista e escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch. A obra foi publicada pela primeira vez em 1985, ganhou o Nobel de Literatura em 2015, e chegou ao Brasil em 2016 pela Companhia das Letras com tradução de Cecília Rosas.
Já faz um tempo que estabeleci uma relação de admiração com a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Começou com seu discurso no TEDx Talks “Sejamos todos feministas”, em que na época foi de fundamental importância para que eu me reconhecesse ainda mais como feminista. Em seguida, li outro livro de não ficção da autora,“Para educar crianças feministas: Um manifesto”, que acredito precisa ser lido por todos, afinal nos ajuda a desconstruir muitas questões sobre ser menino e ser menina.
Após conhecer o lado de ativista feminista da autora, resolvi ler seus livros de ficção. Comecei pelo primeiro, “Hibisco Roxo”, e a partir dele conheci outro discurso famoso da Chimamanda, “O perigo de uma única história”. Se a autora já tinha me feito um convite para refletir sobre o feminismo, o convite agora era para refletir sobre a colonização europeia e seus efeitos na vida dos povos africanos e todos os outros povos colonizados.
No caso de “Hibisco Roxo”, a colonização trouxe para a família da narradora-personagem Kambili a violência doméstica, a opressão machista, o autoritarismo e o fanatismo religioso. Quando a Nigéria sofreu a colonização europeia foi pregado qual modo de viver (e de crer) era o correto e o melhor. O pai de Kambili, Eugene, negava sua língua materna, as crenças e tradições do seu povo, e até seu pai. Isso não justifica as atitudes dele, mas nos faz querer criticar e rebater qualquer possibilidade de poder que dite verdades e histórias únicas.
O mais recente livro da autora publicado no Brasil, pela Editora Companhia das Letras, é o “No seu pescoço”. Publicado pela primeira vez em inglês, em 2009, a obra reúne 12 contos. O convite é mais uma vez para refletir, através de mulheres e homens africanos, os efeitos da colonização e do imperialismo ocidentais.
Muitos dos contos trazem a divisão cultural, social e política, “eles e nós”. Eles como sendo a potência ocidental, os americanos brancos, e nós, como os colonizados, o outro, o diferente, e o imigrante. Digo, “nós”, porque é nessa posição que a Chimamanda nos coloca principalmente no conto que dá título ao livro, quando escolhe usar o “você”, segunda pessoa do discurso, ao invés de “ela/ele”, terceira pessoa, mais comum na ficção.
No conto que dá título ao livro, a personagem principal Akunna ganhou na “loteria do visto americano” e foi para os Estados Unidos viver com um tio. Ao chegar nos EUA, Akuna sofre do que chamamos choque cultural. Tudo é diferente do que ela vivia em Lagos e muito diferente do que ela e seus parentes imaginava como vida americana. O choque ficou ainda mais evidente quando ela começa a se relacionar com um rapaz norte-americano.
Já em “Os Casamenteiros”, temos o casamento de Chinaza Okafor com Ofodile, nigeriano que morava há onze anos em Nova York e estudava medicina. Ofodile vivia como os americanos e tentava ao máximo ser como eles, uma pequena prova disso é que só usava seu nome em inglês, Dave. Quando Chinaza foi morar com ele, a todo momento o seu novo marido ensinava-lhe como deveria se comportar, falar, o que deveria comer e cozinhar, conforme o modo de vida americano. Chinaza também teve que passar a usar seu nome em inglês, Agatha Bell.
No último conto do livro “A historiadora obstinada”, Chimamanda narra de forma emocionante o processo de colonização realizado através das missões anglicanas e a luta de uma mãe para salvar sua terra e suas origens.
Os convites de Chimamanda, através da literatura, são irrecusáveis. São convites que nos tiram do lugar comum, do normalizado, da história única, e nos faz enxergar outros mundos, outros povos, que lutam há séculos para existir além da margem.
Vocês decidiram e eu tive uma das melhores leituras do semestre, sem dúvidas. 💜
Vou usar o clichê, pequeno em tamanho, enorme em conteúdo.
Leitura interessante para nos fazer pensar sobre: descolonização do conhecimento e pensamento; interseccionalidade; os feminismos e a importância do feminismo negro; e o lugar de fala (lugar social) de cada um. Djamila Ribeiro (e as autoras que ela traz no livro), nos faz refletir sobre de que lugar (locus social) falamos?
Não são as nossas vivências pessoais mas o que podemos ou não viver de acordo com nosso lugar social, que é marcado por raça, gênero, classe social e orientação sexual. Inclua na sua lista “O que é lugar de fala?”.
E vamos ficar de olho na coleção “Feminismos Plurais”, da Editora Letramento, porque tem muita coisa boa!
Eu finalmente li o “A louca da casa”, da escritora e jornalista espanhola Rosa Montero. E hoje quero bater um papo com vocês sobre a minha experiência de leitura, o que ficou desse livro em mim, o que ele me fez pensar sobre a vida.
Ou seja, não é uma resenha, é um papo sobre “A louca da casa”.
Eu não fazia ideia do que era esse livro, mas sempre tive vontade de ler por causa do título “A louca da casa” e dessa capa que eu acho vibrante, impossível que não chame atenção em qualquer prateleira.
Lendo descobri que é um grande ensaio sobre a literatura, a narrativa, o ser romancista/escritor, mas também é sobre a louca da casa, que é como a Rosa chama a imaginação, o ponto de partida da maioria das narrativas e o que move muitos escritores. Além também de ser um livro sobre loucura, paixões amorosas e, é claro, a vida da Rosa Montero. Ele é autobiográfico, se nós leitores acreditarmos que a Rosa é uma narradora confiável.
O livro é dividido em 19 partes, sem títulos. Há muitas histórias sobre a vida de outros escritores, inclusive muitos clássicos, para exemplificar os temas abordados. E também episódios curiosos e engraçados da vida da autora, já que como ela mesma diz suas lembranças são organizadas em torno de namorados e livros.
Vou compartilhar com vocês alguns pontos que me chamaram atenção ao longo da leitura:
1) Todo ser humano é um narrador
Por acreditar que literatura é vida, Rosa também diz que todo ser humano é um potencial narrador e romancista. “Nós nos mentimos, nos imaginamos, nos enganamos” durante toda a vida, e somos autores de um romance único que vamos escrevendo ao passar dos dias e que assumimos o papel de protagonista. Concordo demais, e se levarmos essa possibilidade de cada ser humano ser um romancista, um grande narrador da própria vida para o nosso momento atual, em que vivemos conectados, podemos dizer que criamos narrativas diárias nas redes sociais, sobre quem somos e como vivemos.
2) A imaginação é a louca da casa
Meu Deus, sim! A casa é nosso corpo, nossa existência. E a louca desse lugar é a imaginação. Eu tenho uma imaginação muito fértil. Eu olho para pessoas, coisas, momentos, até fotografias, e invento narrativas. Às vezes é bem complicado conviver com tantas ideias na cabeça, que estou pensando seriamente em passar a escrevê-las.
Rosa também fala de como vamos limitando nossa imaginação à medida que vamos crescendo porque ficamos naquela ideia de que imaginar, dar asas a imaginação, é coisa de criança. Então de certa forma, ser romancista é deixar um pouco viva essa criança que fomos um dia e conviver bem com a louca da casa.
3) Compromisso da escrita
Há um compromisso ao escrever. Rosa diz que o escritor deve “permanecer sempre alerta contra o senso comum, contra o preconceito próprio, contra todas ideias herdadas e não questionadas que se infiltram insidiosamente em nossa cabeça”.
Olha que fantástico isso: “permanecer sempre alerta…contra todas ideias herdadas e não questionadas que se infiltram insidiosamente em nossa cabeça.”
Acredito que é um compromisso do escritor, mas é um compromisso de qualquer pessoa que deseja olhar para o seu tempo, seu lugar, de forma crítica. Trazendo para o hoje e também para a realidade de quem não é escritor, vivemos um momento de fake news. Por que as pessoas recebem uma notícia e não a questionam, não buscam outras fontes, não checam? Preguiça de pensar e de desejo de permanecer na zona de conforto com suas próprias ideologias e verdades.
Muitas das pequenas ou grandes revoluções começaram por conta de um questionamento. Escrever é um ato político, e ler também é. Fiquei pensando bastante nessas questões quando Rosa falou sobre o compromisso da escrita.
4) O peso semântico do feminismo
Na parte 13 do livro, Rosa vai admitir que é anti-sexista por conta do peso semântico que o feminismo tem, mas respeita os movimentos feministas e também se considera uma feminista e usa essas palavras por reconhecer a importância histórica e atual dos movimentos.
Essa parte do livro é muito boa porque também ela vai comentar sobre duas perguntas que não aguenta mais responder: existe uma literatura de mulheres? Prefere ser jornalista ou escritora?
O peso semântico do feminismo é forte mesmo. Muitas pessoas só de ouvirem a palavra já abominam os movimentos e não gostam do feminismo porque atribuem um significado com base no senso comum: é a oposição ao machismo, é a mulher dominando o mundo. Sendo que não é. É uma luta por equidade. É uma luta como diz a Simone de Beauvoir para que a mulher seja não seja o outro, o que vive a margem, subalternizado, o segundo sexo. Além de ser uma luta que questiona a cultura machista que impõe também estereótipos sobre o ser homem.
5) As mulheres dos escritores
A parte 16 também me chamou atenção. A Rosa traz algumas mulheres que abdicaram da vida própria para viver em função dos seus maridos escritores e que ainda eram vistas como megeras e loucas. Ela chama inclusive as esposas dos escritores de uma “antiga instituição literária”, que felizmente está em processo de extinção. Ela fala muito de Fanny, esposa de Robert Louis Stevenson (autor de O médico e o monstro) e Sonia Tolstoi, esposa de Leon Tolstoi.
É só um exemplo de que durante muito tempo a mulher foi sempre vista como parte da vida de um homem e não alguém com vida própria. O homem tinha direito pela vida da mulher.
Aqui também acho interessante ler “O teto todo seu,” da Virginia Woolf, e “Os homens explicam tudo para mim”, da Rebecca Solnit.
“Os homens explicam tudo para mim”, da escritora Rebecca Solnit, chegou ao Brasil através da Editora Cultrix. O livro reúne nove ensaios com temáticas feministas e o considero uma introdução ao feminismo contemporâneo.
Gostei bastante da leitura e indico para quem se interessa pelo assunto.
Confira no vídeo os ensaios que foram destaque para mim:
“Extraordinárias — Mulheres que revolucionaram o Brasil”, de Aryane Cararo e Duda Porto, traz vários perfis de mulheres brasileiras e abrasileiradas que fizeram história no nosso país.
Assim que recebi o livro em parceria com a Companhia das Letras, me perguntei: será que tem alguma baiana? E tem sim!
No vídeo comento sobre 3 baianas extraordinárias. Confira!
Olá, sou Jeniffer Geraldine. Sou jornalista e moro na Bahia. Me considero uma pessoa em constante transformação e tenho como lema a frase "transver a vida". Acredito no poder da educação, na leitura e na arte.