Palavras se tornam ações

Desde 2019, eu escolho um lema para ser meu guia no ano. O lema do ano é uma mensagem que nos lembra sempre para onde queremos ir e de que forma queremos ir. É algo para escrever até mesmo de maneira física e colar o papel no espelho ou no computador, em um lugar visível para não perdermos de vista o nosso guia. 

Para este ano escolhi usar uma adaptação de uma frase do filósofo estoico Sêneca. A frase words become works que em tradução livre fica “palavras se tornam obras” por aqui ficou palavras se tornam ações. Esse também foi o meu lema de 2021, ano em que precisava concluir dois grandes objetivos profissionais, um deles o mestrado, e precisei de muito incentivo para me manter no modo ação pois confesso que estava desanimada com o mundo de modo geral por conta da pandemia e tantas outras questões.

Para 2023, a frase tem o sentido de me impulsionar para ações de cuidado, principalmente de autocuidado. Acredito que é um pouco mais fácil nos manter em movimento quando há prazos externos a cumprir. A minha motivação em 2021 era finalizar dois objetivos profissionais com prazos que eu não podia negociar tanto. Além do compromisso comigo, havia o comprometimento com outras pessoas. E não cumprir acordos com o outro gera sentimentos de culpa, de incômodo e na etiqueta social é falta de educação. Dessa maneira, a gente se desdobra em mil, mas executa o cronograma. Passa por cima de outras necessidades, inclusive de ordem emocional, e vida que segue para fazer o que tem que ser feito.

Agora o que quero materializar são as palavras, os projetos, que foram ficando no caminho por conta de acordos externos. Quero dar mais espaço para os acordos internos, ouvir o que meu corpo fala há anos, e que apenas escuto e ignoro. Mudar padrões de comportamento que me puxam para um modo de vida que não desejo realmente, como aquele modo de vida acelerado ou reativo.

As práticas de autocuidado hoje estão muito relacionadas com fazer limpeza de pele, passar um dia no spa, fazer uma massagem. Há espaço para isso, mas são apenas momentos. O autocuidado que busco é o diário. Tentar preencher meu cotidiano com ações que me mantenham mais próxima de uma vida tranquila e saudável. Tentar adotar práticas conscientes que me ajudem a desacelerar mesmo que o mundo esteja acelerado demais. Aprender a atender às minhas necessidades, aqui entendidas a partir dos ensinamentos de Marshall Rosenberg, como “recursos exigidos pela vida para que esta possa se sustentar”. Mas não qualquer vida, a minha vida. 

Pensar em si e agir para si podem ser consideradas atitudes egoístas, mas eu lembro de uma das lições de Audre Lorde, “Cuidar de mim mesma não é autoindulgência, é uma autopreservação e isso é um ato de guerra política”. O sistema neoliberal nos impõe um modo de vida competitivo, nos auto exploramos, estamos correndo em uma maratona que não sabemos onde vai dar, e, às vezes, nem sabemos como foi e nem quando foi que nos inscrevemos nessa maratona. Ao tentar colocar em prática ações de autocuidado temos autonomia.

No livro Um sopro de vida, da Clarice Lispector, há um fala da personagem Ângela que gosto bastante. Ela diz:

“tenho profundo prazer em rezar – e entrar em contato íntimo com a vida misteriosa de deus. não há nada no mundo que substitua a alegria de rezar. hoje varri o terraço das plantas. como é bom mexer nas coisas deste mundo: nas folhas secas, no pólen das coisas (a poeira é filha das coisas). meu cotidiano é muito enfeitado. estou sendo profundamente feliz.” (p. 36)

A frase “meu cotidiano é muito enfeitado” me propõe a construção de um cotidiano afetivo como parte do cuidado de si. Incluir no nosso dia coisas, momentos, que nos tragam alegria. Um café da manhã degustado com calma. Aquela música para cantarolar junto. O perfume que vem das almofadas do sofá. As flores colhidas em um jardim próximo. Folhear os livros da estante. Arte e fotografias na parede. O momento de molhar e cuidar das plantas na varanda. E o que mais couber no cotidiano para fazer da vida um pouco mais. Descobri já faz um tempo que essas são algumas das minhas necessidades, alguns dos “recursos exigidos pela vida para que esta possa se sustentar”. 

Para muita gente isso é romântico demais, totalmente fora da realidade, porque o cotidiano está cheio de demandas, acelerado, ofegante. Durante um período alimentei esse modo de vida também. E adoeci. Ou seja, não é para mim. E acompanhando algumas notícias, conversando com alguns conhecidos, escutando conversas por aí, percebo que esse não é o modo de vida desejado por muitas outras pessoas também. 

Então no início de 2023, eu me sentei com um caderno e escrevi as palavras que quero tornar ações. Elas estão agora na minha agenda do ano, a ferramenta que vai me ajudar a não esquecer das demandas importantes, e entre as demandas importantes está “eu saudável”. E ao virar a página tem uma frase adaptada do Caio Fernando Abreu: Tentar da maneira mais bonita que eu souber.


[Texto publicado em 13 de março de 2023 na minha antiga newsletter.]

Espalhe por aí:

Deixe um comentário:

4 comentários em “Palavras se tornam ações

  1. Que oportuno, pertinente texto; é essa filosofia que tento sustentar diariamente.

  2. Bela reflexão! Parabéns pelo texto.

    Adorei o seu blog e estarei por aqui agora. Esteja à vontade para visitar o meu espaço também.

    Boa semana!

    O JOVEM JORNALISTA está no ar cheio de posts novos e novidades! Não deixe de conferir!

    Jovem Jornalista
    Instagram

    Até mais, Emerson Garcia