Em plena segunda-feira, após quatro horas de chá de espera, chamaram meu nome e entrei no consultório do cardiologista. Já estava meio tensa e curiosa para saber como andava o meu coração, que não é tão velho de guerra assim, mas já está um pouco cansado.
– Está tudo bem, dona Jeniffer. Não vejo nada demais aqui. Vamos cuidar da alimentação, tomar sol, tentar relaxar mais. Vou passar algumas vitaminas.
– Ah, que bom!
– E, como vai a crítica cultural? O que é mesmo que está pesquisando?
Respirei fundo e pensei comigo mesma: vamos lá, Jeniffer!
Eu pesquiso leitura e feminismo, com foco em mulheres não-brancas. Falei, paciente e tranquila, sobre as desigualdades do Brasil, evidenciando as desigualdades que existem no mercado literário, um campo masculino, branco, heterossexual. Até que ouvi o tão fatídico: não existe isso no Brasil. Seguido do “cor não importa quando se trata de escrever ou ler um livro. Se é negro, se é mulher, não importa. O que importa é se escreve bem. E escrever não é fácil”.
Meu coração ficou um pouco mais cansado.
Olhei em volta e fiz uma leitura daquele senhor que estava na minha frente, que se definiu como pardo/negro (meio em dúvida, com cara de questionamento), do seu consultório de médico respeitado na cidade do interior, e pensei: quando a opressão não chega até nós, nós acreditamos que ela não existe.
Esse diálogo foi um exemplo perfeito do chamado mito da democracia racial. Seria muito bom que a cor, o gênero, a classe, a orientação sexual, não importassem, mas importam. Somos seres marcados socialmente e nosso lugar social diz até onde podemos ir.
A filósofa Sueli Carneiro, em seu livro “Racismo, Sexismo e desigualdade no Brasil”, diz que o Brasil é um país “apartado racialmente pela exclusão racial”. Gosto do título do livro da Sueli. É objetivo, dá nome às coisas sem medo. O título traz três problemas existentes no Brasil – racismo, sexismo e desigualdade. Problemas que o doutor não soube nomear. O médico nomeou esses problemas apenas com o “isso”. É difícil falar porque nomear algo o torna real.
No final, ele disse: – Mas quem sou eu, né?! Apenas um médico de consultório, no interior.
E eu só pensei: está na hora do senhor sair do consultório.
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Foto: Arte de Rodrigo Branco no Centro Cultural Dragão do Mar, em Fortaleza/CE.